Elizabeth Brasil, presidente da UMAR fala à DECO
Com 76 colaboradores e 3 casas-abrigo em Portugal, a União das Mulheres Alternativa e Resposta atende por ano largas centenas de mulheres em risco por violência doméstica. Elizabeth Brasil trava luta diária para apoiar todos os casos.
“Mulheres em perigo de vida vão para as casas-abrigo”
Que tipo de apoio dão às mulheres que vos procuram?
Temos três casas-abrigo: duas nos distritos de Lisboa e Setúbal e outra no distrito da Horta, nos Açores. Temos uma linha azul só destinada aos Açores, para atendimento telefónico a mulheres vítimas de violência. Temos cinco centros de atendimento em Portugal Continental e nos Açores. Fazemos o atendimento geral, a despistagem da situação, o acompanhamento psicológico, o apoio social. Este é conjugado com uma rede de parceria múltipla, em que se incluem centros de emprego e juntas de freguesia. Estamos nas redes sociais, nos concelhos locais de acção social, nas comissões de menores, mas não fazemos acção social. É um trabalho específico só na área da violência. Com as parcerias, tentamos que não se verifique a revitimização dos serviços às próprias mulheres. Fazemos o despiste das necessidades em termos de acção social. Temos também um serviço de emergência social durante o dia e fazemos o cruzamento com as necessidades nocturnas da linha 144, número nacional. Todas as mulheres que procuram apoio, no distrito de Setúbal, à noite, no outro dia de manhã estão aqui connosco. Há de tudo. Desde a fralda à papa, até ao reconstruir da vida. Onde e como vai ser, o risco implicado, e também o seguimento jurídico dos processos das mulheres, que asseguramos, desde o início até ao final.
Tem ideia de quantas mulheres passaram pela UMAR?
Em 2007, passaram pelo atendimento cerca de duas mil mulheres, 500 processos abertos. Cada ano dá para um estudo diferente, pela profissão dos agressores, tipo de agressão, etc. Quando acho que já vi o pior, vem outro dia e pergunto-me “como é que é possível”. Às vezes vejo mulheres ditas esclarecidas e é incrível como as situações podem ser tão devastadoras, como é que tão lentamente se foi deixando morrer, aniquilar.
Qual a média das idades das vítimas?
Depende muito. Há cada vez mais jovens. Em situação de casa-abrigo é sempre o marido o agressor. Em centros de atendimento, há idosas que são agredidas pelos filhos e também pelas noras. Mas a maior parte das idosas agredidas pelos filhos, que têm problemas de toxicodependência, vêm desabafar, num momento de crise, mas nunca querem apresentar queixa contra o filho, nem sair de casa.
A violência contra homens é menos reportada, mas é um fenómeno real.
Nenhum homem pode agredir uma mulher, nem nenhuma mulher pode agredir um homem. Sabemos que 2,6% dos homens são agredidos pelas mulheres, mas mais de 97% são mulheres agredidas. O nosso público-alvo são as mulheres, mas já atendemos homens vítimas de violência. A perigosidade é distinta. A agressão tem em vista o homem sair de casa. Quando homem sai, a mulher não vai persegui-lo.
Pode descrever-nos a mulher que vai para uma casa-abrigo?
Não está segura em casa ou foi expulsa do lar, e encontra-se, após uma situação de violência, totalmente desprotegida. Às vezes não existem familiares ou estes não se querem envolver. Não temos nenhuma rede de suporte de familiares ou de amigos que intervenha e dê protecção. É uma situação de risco social. Pode não ser de alto risco de homicídio conjugal, conclusão a que chegamos pela duração, padrão, frequência e severidade. Mas há uma mulher na rua com as suas crianças, sem suporte familiar, sem amigos que a possam apoiar e sem meios económicos para pagar uma habitação. Uma mulher destas também pode ir para a casa-abrigo, embora não a maioria. Grande parte das mulheres aí estão porque a vida delas corre risco. E é por isso que elas se obrigam a estar neste espaço.
Deveriam ir também para a casa-abrigo mulheres em situações de risco de repetição da conduta violenta.
Estamos a falar de agressão física?
Estamos a falar de agressão física, psicológica ou de perseguição. Vão para a casa-abrigo várias situações de risco social, de tentativa de homicídio ou de ofensas graves à integridade física. Temos instrumentos de avaliação. O que conta é determinarmos se uma situação é de alto risco ou não, tendo em conta o tempo de exposição às agressões, a severidade das mesmas, a frequência com que têm ocorrido, uma série de questões na avaliação de risco da violência.
Quanto tempo pode uma mulher permanecer numa casa-abrigo?
Há um decreto que afirma que a casa-abrigo é um recurso a utilizar por 6 meses. No entanto, entendemos que é um espaço de recomeço com um timing que uma lei não determina. Cada mulher tem o seu contexto, o que inclui o tipo de trabalho que consegue arranjar, o número de filhos que a acompanham e o reatar de redes familiares de suporte e de amigos. Tivemos uma mulher que esteve lá dois anos, mas outras estão lá 3 ou 4 meses. É uma média de 8 meses a 1 ano. É o tempo para se organizar.
Há mulheres sem emprego e que precisam de formação profissional?
Sim. Todas as mulheres que entram nas casas-abrigo em princípio não têm emprego. Tiveram que o deixar. Uma casa-abrigo de Lisboa dificilmente responderá a uma mulher de Lisboa, por questões de segurança.
Ninguém deve saber onde fica a casa-abrigo, muito menos o agressor. Há tentativas nesse sentido?
Por vezes, o agressor tenta saber onde fica a casa. Não temos muitos casos. Em 8 anos de casa-abrigo temos duas situações. Geralmente, em situações de alto risco, as mulheres têm de sair e ir para outro sítio. Não é só o afastamento do agressor que as coloca em segurança. Aliás, nós vemos isso no trabalho que fazemos no Observatório das Mulheres Assassinadas. Verificámos que a grande maioria daquelas mulheres já tinha abandonado as relações violentas. E os companheiros tentam encontrá-las, para que as mulheres voltem. Não aceitam que o corte relacional tenha ocorrido, muito menos tendo sido ela a dizer “basta” na relação.
As mulheres vêm directamente ter com a UMAR, ou via polícia?
Há várias formas. Também depende muito do trabalho que já temos na comunidade. Chegam até nós através da PSP, da GNR e dos hospitais. Há mulheres que se dirigem directamente ao tribunal e este indica-nos. Chegam através das linhas de emergência, do 144. Por vezes, chegam através de outras organizações com linha verde, que as reencaminham por estarmos mais próximos ou ter a resposta mais adequada àquela situação. Chegam através de amigas ou vizinhas, e por elas próprias, porque viram o número nalgum sítio. E chegam através de outras instituições parceiras, da Segurança Social no seu atendimento, de outra Instituição Particular de Solidariedade Social no seu atendimento.
Muitas mulheres trazem os filhos para as casa-abrigo. Como reagem?
Estas crianças são pequenas guerreiras. Tiveram de lutar muito para estar onde estão. Muitas vezes, defenderam as mães. Todas são vítimas da violência. Representam dois terços da população destas casas. É um peso viver numa casa-abrigo, porque são sítios de algum segredo, de anonimato. É necessário ter uma série de precauções. Todas as crianças vão à escola, mas não podem dizer onde estão. Tudo é tratado com o Ministério da Educação. Facilitamos o enquadramento imediato na escola, com ou sem vaga. Tem de mudar tudo: a zona, o emprego, a escola e recomeçar noutro sítio com um nome diferente. O nome das crianças não aparece nas pautas das escolas. Ou lhe damos uma letra. É um mundo de sigilo e de segredo.
Há crianças que entram nas casa-abrigo sem o domínio dos esfíncteres, algumas ficam sem andar, paralisadas, não andam. Há crianças que não falam. Temos de medir a aproximação e o toque físico. E é com grande emoção que depois as vemos evoluírem.
Os pais tentam ver as crianças?
Tentam quase sempre ver as crianças. E utilizam-nas para tentar saber onde estão as mulheres. Uma vez decretado o regime de visitas, na maioria das vezes, não é cumprido. O que está em causa é utilizar a informação de que a criança é portadora para o seu objectivo, que é encontrar a mulher. E temos poucos pais que apenas querem estar com os seus filhos. Temos tribunais distintos para matérias distintas, não temos tribunais especializados, com competência mista nesta área. É um defeito do nosso sistema. Há medidas de afastamento em processos-crime e obrigação de visitas, ao mesmo tempo. Obrigam a mãe a levar o filho para ver o pai ao fim de semana. Os nossos magistrados entendem que se deve separar a relação de conjugalidade da relação de filiação, mesmo nos casos em que a criança era agredida. Estamos a salvaguardar enquanto estamos numa casa-abrigo, mas depois não há salvaguarda possível. Há crianças nas casas-abrigo que não querem ver os pais nunca mais, estão assustadíssimas, têm medo, nem imaginam uma situação dessas. Mas há outras que têm saudades do pai e querem vê-lo. Temos de lhes proporcionar que, em segurança, possam ver os seus pais. Temos crianças que assistiam às situações, mas que nunca foram directamente agredidas e que o pai com elas era perfeito. Muitas vezes, pedem-nos, e não à mãe, para ver o pai. E nós temos de falar com a mulher e ver se há condições para proporcionar uma convivência com o pai. Temos situações de interdição. Os pais estão proibidos de ver os seus filhos. E temos outras situações em que existe um regime de visitas fixado. Acompanhamos as mulheres nas entregas das crianças, sempre sabendo que isso pode pôr em causa a própria casa, porque os pais tentam obter informação das crianças.
A violência doméstica é um fenómeno transversal a todas as classes?
Sem dúvida. Se antes tínhamos estudos que indicavam isso, e tínhamos muito discurso de outras Organizações Não Governamentais internacionais que, pela sua experiência, comprovavam isso, hoje temos a noção clara de que é assim. Porque cada vez mais nos chegam as ditas pessoas diferenciadas. É tão normal vir uma mulher com o quarto ano de escolaridade e iletrada, como com licenciatura, mestrado ou doutoramento. Hoje sabemos que é transversal e atinge mulheres de todas as raças. É interessante, porque percebe-se que as mulheres já não se sentem tão socialmente estigmatizadas pelas questões da violência. Por vezes, há diferenças em termos da escalada e do tipo de agressão. Nas classes sociais ditas mais elevadas, a violência não é física desde início. Começa por um mal trato muito subtil e vai subindo de tom até à violência física. E há outras situações em que, desde sempre, a violência física ocorre ao mesmo tempo que a psicológica. Há uma década atrás, estas mulheres ditas diferenciadas, vinham e diziam: “sei que não devia utilizar um serviço destes, é um abuso, não sou igual às outras mulheres”. Hoje em dia, não. Sentem legitimidade para estar neste espaço.
Há uma grande desinformação: nem todas sabem o que podem fazer, quais os seus direitos.
Muitas vivem em circuitos fechados, em casa, a tentar controlar o que se passa para que não haja problemas. São muito controladas no trabalho: ”a que horas saíste? Chegaste mais tarde porquê?”. Ou a informação está disponível no trabalho ou nos circuitos que fazem de casa para o trabalho, ou vice-versa, ou não têm informação e fácil acesso à informação. Muitas vezes é através dos meios de comunicação que mais facilmente obtêm informação. Anotaram o número de um programa na televisão.
As mulheres de classes mais favorecidas são mais informadas?
Na generalidade, há um desconhecimento face aos seus direitos ou há falso conhecimento. Há um desaprender do seu próprio conhecimento. Cria-se uma insegurança tal que já não se acredita saber coisa nenhuma. Se tem mais acesso à informação, anula os conhecimentos de que é portadora. Quando chegam estão no mesmo patamar, que é de insegurança, muita fragilidade e auto-descrédito. Já não sabem para onde vão, o que fazer, precisando de alguém que as apoie e fortaleça.
É um pouco perverso: é a vítima que tem de mudar a sua vida.
A perversidade está aí. Aquele que comete um crime fica na sua casa, embora tenham sido duas pessoas a trabalhar para lá estar, a aguardar pacientemente que a justiça cumpra os seus desígnios e que, no final, será sempre uma pena suspensa. E, portanto, compensa. Quando estamos a falar de situações de alto risco, as mulheres nunca voltarão àquela zona de origem. Muitas vezes nem lhes é permitido tirar as suas coisas de casa.
Como analisa a proposta de lei sobre violência doméstica?
Há uma tentativa de juntar numa única lei aquilo que se encontra em vários decretos. É quase uma lei-quadro. Mas acho que há propostas que não salvaguardam interesses legítimos das mulheres vítimas de violência. A lei prevê o encontro restaurativo entre o agressor e a vítima, mas a mediação só é possível quando há equilíbrio entre as partes e nestas questões não há equilíbrio. A parte mais fraca, para obter a dita paz social, vai sempre ficar com menos para chegar a um acordo. Aceita-se pouco para se ver livre da situação. Isto não é no sentido de haver uma reconciliação, mas no sentido de chegar a um final mais célere do processo-crime. Não se entende bem o porquê da necessidade de consentimento do arguido para lhe ser aplicado os meios electrónicos de vigilância. Temos medidas de afastamento que podem e devem ser controladas. Esta nova proposta vem dizer que esta pulseira só pode ser aplicada se o arguido concordar.
Há também uma governamentalização das questões da violência. A sociedade civil e as associações quase não são tidas nas soluções apontadas para a violência doméstica. É o Estado que vai dar todas as respostas?
Há também uma tentativa de hierarquizar violências, algo que não deve ser feito. Não posso dizer que a violência contra as mulheres é mais grave do que a violência contra os idosos ou que esta é mais grave do que a contra as crianças.
O sistema está a re-vitimizar a vítima, quando lhe exige que se reconheça como tal. Quando denuncio uma situação estou a posicionar-me face àquele crime e não preciso de assinar mais nada para me reconhecerem como vítima. Isso é uma humilhação. Mas só se me reconhecer como vítima é que tenho direito a apoio psico-social.
Pensa que há uma progressão lenta da legislação?
Não, há uma progressão muito lenta da magistratura. A lei prevê este tipo de crime, diz que é um crime público, que se enquadra na criminalidade violenta, diz que há formas de coacção e que devem ser aplicadas. E o que se vê? Quantos arguidos estão presos? O Ministro da Justiça afirma que há cinco. Em milhares de casos. E temos cerca de 100 a cumprir penas suspensas. Há um com pena efectiva.
Há toda uma sociedade, onde se inclui a magistratura, que teima em não ver este crime como específico, distinto de outros tipos de crimes. O próprio sistema faz uma interpretação subjectiva, não à luz do espírito da lei, mas das suas crenças pessoais e vivências da comunidade em que se inserem. Temos um sistema que trava. Há julgamentos de casos de violência doméstica em que, se não perceber o que se está a passar, não sabe quem é o agredido e o agressor.
Qual é o papel do Estado em termos logísticos?.
Tudo o que as associações não governamentais fazem é da competência do Estado. O facto de a competência ser minha não quer dizer que seja eu a executá-la. O Estado tem de garantir a qualidade do serviço. Tem de garantir o funcionamento de um sistema legal, exequível face aos interesses e expectativas das pessoas. Tem de financiar as respostas sociais. Tem de avaliar, inspeccionar. Não defendo uma estatização dos serviços da violência, mas o Estado deve dar mais apoio financeiro. Cada organização deve pensar na sua autonomia financeira, mas aquilo que é desenvolvimento de trabalho que compete ao Estado, é este que deve arcar com todos os encargos financeiros. A casa-abrigo deve ser paga pelo Estado. Mas as outras actividades, não. A UMAR tem o Observatório das Mulheres Assassinadas, em regime de voluntariado. Não obstante fazermos trabalho na área da violência doméstica em cooperação com o Estado não nos torna dependentes. Negociamos de forma a podermos dar uma resposta o mais digna e melhor possível.
Que conselho dá a uma mulher numa situação de violência?
Desde logo que se reconheça com mais força do que julga ter. Ela pode modificar a sua situação. Ela tem capacidade de arranjar uma alternativa. É possível ter relacionamentos não violentos. Ela é vítima de um crime, que o sistema reconhece. Há serviços na sociedade a que se pode dirigir, de forma sigilosa e gratuita. Há pessoas preparadas para a ouvir. Ela não é culpada do que lhe está a acontecer. Deve denunciar o crime. Se estiver em risco, delineie uma estratégia de emergência. Ter o número da PSP ou da GNR à mão, para pedir ajuda. Há uma linha nacional de emergência social, o 144, pronta para a ouvir, que durante a noite pode proporcionar-lhe acolhimento, vestuário e alimentação. Guardar os seus documentos e dos filhos. Ter algum medicamento que faça falta na casa de uma amiga. Ter noção de quais são os locais mais perigosos, como as cozinhas e as casas de banho. Há homens que agridem sempre no mesmo sítio. Pode também codificar no telemóvel nomes de pessoas amigas. Pedir na escola que se esteja mais atento aos filhos. Avisar a família e pedir o seu apoio.
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